Jogo

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Ela joga. Ele joga também.
Nas mãos as cartas ditam a sorte, no peito a mudez aperta o destino.
Olham-se, antevêem as jogadas possíveis, os valores que têm na mão, as feridas abertas que persistem no coração, e olham-se, sem trocar palavra.
Jogam durante a noite, apostam na escuridão em que se reconhecem pelo som abafado das cartas a roçar a pele. A luz estraga-lhes o jogo, aviva-lhes as feridas, e por isso jogam de noite.
Nunca acabam o jogo. Ela sorri, a pensar que as cartas lhe sorriem também. Ele sorri, a ele as cartas também lhe sorriem.
Os naipes são coloridos, o fascínio, a loucura, a alegria, o amor, pinturas esquecidas, brilhantes e novinhas, porque tudo se renova no coração dos homens. Mas no escuro mal se apercebem das cores, só adivinham os rostos um do outro, só adivinham o que poderia ser se tivessem a coragem de acender a luz.
E jogam. Um jogo que só acaba quando um deles abrir os olhos. Só acaba quando um deles acender a luz, quando um deles deixar de achar o escuro o refúgio mais seguro.
Não será hoje. Hoje a caverna de Platão ainda lhes parece a pintura mais segura, a realidade pode doer, o jogo pode ser a sério lá fora, onde os sentimentos são a sério. E doem.
Mas curam. E fazem viver.


... não deixes de escolher entre tudo e o nada ...


Dormência

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É um vazio que lhe preenche todos os recantos da alma.
Esmaga-a e oprime-a.
A dor paralisa-a, enche-lhe o peito de fumo denso e o nevoeiro de si asfixia-a.

E não se apercebe de como consegue permanecer viva. Levanta-se, aquece um copo de leite com chocolate, porque o leite simples a enjoa. Pensa em si como um enorme copo de leite simples.
Veste-se, qualquer coisa que não chame a atenção, sai de casa e maquinalmente repete os capítulos da sua existência.

Trabalho. Casa. Trabalho. Trabalha. Sem lá estar. Presa a um corpo que não reconhece, a uma vontade que não é a sua. Desprovida de alma.

Lá no fundo. Bem no fundo do seu dia e da sua noite. Uma luz de ser, um grito mudo a querer voar. Um gesto que pesa num ser que não se reconhece. E um jeito de olhar que tenta ver o que não está lá. O essencial é invisível aos olhos.

Mas a dormência persiste. A paralisia atordoa-lhe a vontade. E está só.
Um fio quente de vontade esfria num corpo de pedra cinzenta. À espera, lamentavelmente à espera de si.


... sempre a mesma vida encalhada nesse sempre ...


Conformismo

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E em honra dos inconformados, no seio dos quais tive o privilégio, só agora reconhecido, de crescer.

A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome para qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue de um peito aberto sai

O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte
o Pintor morreu

Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina, à morte que te matou
Teu corpo pertence
À terra que te abraçou

Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas de uma nação

A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome para qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue de um peito aberto sai

O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o Pintor morreu

O Pintor morreu
O Pintor morreu
O Pintor morreu

***** ***** ***** ***** ****

No céu cinzento sob o astro mudo
Batendo as asas pela noite calada
Vêm em bandos com pés de veludo
Chupar o sangue fresco da manada

Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhes franqueia as portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

A toda a parte chegam os vampiros
Poisam nos prédios, poisam nas calçadas
Trazem no ventre despojos antigos
Mas nada os prende às vidas acabadas
São os mordomos do universo todo
Senhores à força, mandadores sem lei
Enchem as tulhas, bebem vinho novo
Dançam a ronda no pinhal do rei
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

No chão do medo tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos na noite abafada
Jazem nos fossos vítimas dum credo
E não se esgota o sangue da manada
Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhe franqueia as portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada


Frio

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Tudo aquece quando, ao longe, o filho lhe acena.
Tudo se torna brilhante e colorido.
Desliza a face pelos cabelos macios e fofos da criança. Está cansada, tão cansada, mas vive para aquele abraço onde cabe o mundo, onde o universo se torna pequeno, onde a sua vida ganha alma e sentido por ter existido um momento de pura alegria, de verdadeiro amor.
Como foi o teu dia, bom, e o teu? Hoje aprendi a quem foi o primeiro rei, vês, estás a tornar-te um homem!
E o orgulho invade a pequena casa, tosca e fria.
Noite fria, o inverno este ano é rigoroso, e ela aquece-lhe a camita com os seus cobertores. Aquece-se no seu sorriso adormecido. Se houver felicidade na tristeza, é isto. É ter um filho de veludo, entranhado na carne, uma voz que nada nos diz, mas nos canta doces rimas que ninguém entende.
A noite foi fria. A madrugada aproximou-se galopante. É só mais um dia, um outro dia, igual.
Acorda, filho! Vamos para a escola, está bem mamã!
Está frio na rua, o frio agarra-se à pele, a chuva beija-lhes o rosto. O petiz segue alegre, segurando a mão da mãe. Era tudo tão simples naquela idade.
Agora está frio, tanto frio. E a tosse muda que arranca vida levará a melhor, um dia, talvez um dia frio como este.


... o frio aperta na manhã submersa ...


Ausência

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Rasga-se o papel e sopram-se as letras que escorregaram para lá.
Escondem-se as frases, calam-se as vontades de ser mais.
Foge-se como a areia que escorre poética por entre os dedos, mas a eles dói-lhes a queda amontoada. A eles não tentam agarrar e conter, eles não são tesouros por encontrar, antes procuram esconder-se.

Houve um momento em que agarrou a ausência que os separou. Mas a ausência é um crime perverso e subvertido de si mesmo, onde está não o é. Queimou-lhe as mãos, os dedos chicoteados abriram a fenda da vontade e ela fugiu.

É como o vento, é como o mar e a lua, é como o desenho, é como a nota que não se dá, é como o sorriso que não se finge. A ausência queima por não existir o que existe.
Há quem lhe chame vida. Eles chamaram-lhe amor.
... sorrir não é pêra doce ...


Preguiça

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Ou ócio ...
Um dia não saõ dias, e há tudo para fazer para ontem. Não dá para parar e respirar o verde que desponta nas árvores, não dá para parar no sinal vermelho e pensar como era bom estar noutro sítio.
Pois ela parou. Involuntariamente, diga-se em abono desse bem escasso que é a verdade, porque filmes pendentes da cena estática da sua vida se acumulam e empoeiram o seu cantinho no chão deste mundo.
Mas parou.
Parou.
E agora havia que recomeçar a render. Era bom despir a culpa que se fez palpável no meio da preguiça das horas dormidas e sonhadas com o que afinal é tão, tão mais importante.


Qualquer coisa em mim me lembra sorte e eu confesso que eu aposto


Traição

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Não o viu chegar.
A surpresa sempre terá sido o elemento chave do mais puro dos assassinos.
Nem pressentiu, nem cheirou. Ele aproximou-se por trás, para não a olhar nos olhos, para não a ver chorar ... eis como não a conhecia, chorar, por ele?
Estranho, tudo foi rápido e estranho. Ora agora vive-se, ora agora se mata! Ora se ama, ora se odeia. Não foi um crime passional, não foi assim que se conheceram, foi um crime por ser, foi a defesa da mesquinhez.
E com as mãos fortes e hábeis a estrangulou brutalmente, os seus sonhos e desejos, tentando ferir os seus defeitos, macular a sua vontade. Ela não disse nada, nada havia a dizer. Jazeu no chão frio e branco do que tinha sido conhecê-lo, olhando-o. Viu-o afastar-se.
Mais tarde, os médicos da alma e do corpo e da amizade e da sabedoria, que a encontraram à beira do fim, lhe dirão que teve muita sorte. As cicatrizes sararão, os medos desvanecer-se-ão, a seu tempo.

... é so mais um começo ...


Indiferença

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Caminhou durante horas. Por fim, abandonou-se.

Tudo teria começado, segundo se soube, quando lhe bateram por tentar que lhe prestassem um pouco de atenção. Mas neste mundo não se pode pedir atenção. Muito menos quando se é criança e se fala a linguagem dos pês, dos sonhos e dos balões.

Olhou a bola de sabão colorida e brilhante que se desprendia da sua mãozinha. Por artes mágicas a criou. Mais ninguém a via. Ninguém quis ver. E saiu para o mundo, tentou mostrar a bola de sabão perfeita!!! Mas não sabia nada da Bolsa, nem de sinais de trânsito, nem de etiquetas, não sabia de nada, a não ser que tinha na sua mão a mais bela das criações da imaginação.
Levaram-no à polícia, por estar só. Não sózinho, antes só. Mas perdeu as palavras que o levariam de volta para a casa muda onde tentara brincar. Quando lhe tentaram oferecer um chocolate, rejeitou. Só voltou a ver o céu quando todos se distraíram e ele conseguiu, com os seus pézinhos ágeis, fugir a toda a brida. E abraçou o mundo que não o viu.
A noite caiu e chegou. Fez frio. A bola colorida esfumou-se. Abandonou-se, caiu prostrado. Nos sonhos renasceu.
Nunca mais se soube nada dele. Se é que alguma vez se soube.

... amanhã tenho muito que fazer ... não sei muito bem o quê, mas devo ter ...


Silêncio

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Não que quisesse ir, não que quisesse ficar, não que quisesse alguma coisa senão ser.
O carro vai, automático e recto, constante e direito, em frente. Dirigem-lhe a palavra, e ela responde em monossílabos desprovidos.
A mão estende-se, roça o vidro da porta onde se encosta, enrolada em si. O rio segue, ao lado. O rio segue, que disparate, vai pensando, o rio corre. E ela corre, sentada. Corre ao lado do rio, enterra os pés na areia. Em silêncio.
Um casal sentado no pontão. Surda a punhalada. Surdo e roufenho o baque do coração que deixou de bater. O rio já não corre, ela já não enterra os pés na areia, as palavras monossilábicas perderam-se a caminho de outra resposta ausente.
A ponte. E ela brinca com as palavras. A ponte leva-me ao longe. Longe. A ponte voa para fora daqui, fora deste carro, fora deste sol que não lhe toca. E um desespero de seguir a ponte, de voar com ela. Silêncio.
Quase adormecida. O carro pára. Saem todos, ela também. Ar fresco. De volta à prisão. Muda.

... e esqueces essa canção que já não passa na rádio, mas que vive secretamente dentro de ti. Fechas a porta à chave com duas voltas e sais ...


Incerteza

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Rosto ardido, espera ...
Acende outro cigarro enquanto os segundos se somam, intermináveis e lentos.
Espera, desespera. Voam-lhe os pensamentos com o fumo cinzento do cigarro, desfazem-se as certezas e as convicções.
E agora?
Aperta os dedos uns contra os outros, o ruído surdo estalo embala-o e pela primeira vez desde a madrugada precoce desse dia, vacila.
Tantos planos roubados, tantos esquissos desleixados... tanto suor para dar em nada. Agora sabia, tinha a certeza da sua fraqueza. Atirou o cigarro para a calçada, tirou as mãos do bolso, e desapareceu numa qualquer esquina.
Eu estava lá, no fumo que lhe passou despercebido. E chorei quando o vi afastar-se, desperdiçar-se, deitar fora a certeza do seu amor. Gritei-lhe, puxei-o, mas nem me viu, não me ouviu. Não me ouvi cair no chão.

Abriu as asas e voou...


Day 1

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Vivemos no tempo dos assassinos
Tempo de todos os hinos
Ouvimos dobrar os sinos
Quem mais jura
É quem mais mente

Olho para trás ... o meu espaço negro e só pariu este novo espaço, mais solto de mim.
Porque vivemos, de facto, no tempo dos assassinos, e eu sou assassina de sonhos, assassina de mim, como todos somos.
Estas primeiras frases pretendem dar uma luz nocturna sobre o que quis fazer deste espaço: o incógnito desconhecido. Crimes de paixão e de ódio, de preguiça, lazer e tudo o que nos move.
Movida a Jorge Palma, mas não só. Nas palavras do Manel Cruz no planeta Pluto, Bem vindo a ti!!!

Até breve ...


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