Ciclos

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Despiu-se de toda a tristeza e viu a sua casca incendiar-se no contacto com o chão frio. Quis voltar a vesti-la, sentir a aspereza dura da eterna dismorfa solidão asfixiá-la um pouco mais, mas a ampulheta girou sobre si mesma e implodiu, desfazendo todo os restos de casca. Morta.
E nua enrolou-se na fogueira pálida da auto-suficiência. Plagiou a sua memória dos arquivos inacabados de ser um anel de fumo a pairar na imensidão da vida. Respirou, uma vez, uma outra vez, e uma última vez.
Deixou um anel de calor tatuado no chão. Para sempre.


Vai deixando o tempo passar
Vai trincando o que te dão para comer
Talvez vá o mundo fluir


Regresso

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Chuva. Chuva miudinha a cintilar no alcatrão massacrado das pressas e correrias. Chuva que gostava de sentir no rosto quando se abeirava da janela e punha a mão de fora para decidir o que vestir de manhã. Chuva da que lava as tristezas e traz arco-íris em cada gota.
Sem frio, só chuva. Delicioso, pensou. Pôs a mala a tiracolo e fechou a porta atrás de si, enclausurou a fome em casa, e foi. Foi por aí e ali, cá e acolá, sentir a chuva dar-lhe as boas vindas depois da viagem do dia anterior.
Atravessou algumas ruas em seco, impelido apenas pela vontade de ir, seguir, continuar e persistir. Não interessava tanto o destino como o simples acto de andar e viajar, aliás sabemos que é assim a maioria das vezes.
Numa esquina encontrou-a. Sentada no chão. Um cartaz pintado com escassez de alfabetização pedia ajuda para ela e um rancho de filhos petizes. Ele olhou, mirou e lançou a mão à mala de tiracolo. Deu-lhe um olhar doce, enquanto acendeu um cigarro e lhe ofereceu outro, que ela aceitou engelhada no hábito de não falar.
Pensou que não mudara muita coisa desde que partira. A mulher tinha mudado de sítio, havia mais cores nas montras, mas pouco mais. Nem ele tinha mudado tanto como isso.
Alguns dias depois passei pela mesma esquina onde os tinha visto a trocar olhares e fumaças. Ela falava com ele, com um azul enorme a raiar-lhe os olhos. Ele, sentado e desgrenhado, com um cartaz a pedir apenas sorrisos e pedaços de vida. Ambos à chuva. Ambos mais felizes. Ela já sem cartão.
Não me aproximei. Deixei-os voar assim...


Acende mais um cigarro irmão
Inventa alguma paz interior


Perda

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Assim é ...



Podiam não ser dele os olhos que não olhavam, e até podiam não ser dela as palavras que ficaram suspensas entre meias medidas por classificar. Nunca o tinham feito. E agora sabiam, nunca o fariam de todo.
Não o seriam nunca. Foi isso que soube quando abriu os olhos dormentes do descanso que não teve. Soube-o, e já o teria sentido se não fosse uma qualquer ilha de esperança onde tinha ancorado as suas palavras.
Saiu. Cortou o cordão da rotina onde se tinha fixado para perdurar o instante. Deixou que o vento lhe trouxesse os bons dias e acenou com os olhos ao mundo que tinha ficado para trás. Na realidade.
Encostou-se na madeira do banco velho de jardim, aspirou o verde imenso a dançar nas folhas que amplificavam a saudade, o castanho quente do outono que regressava uma e outra vez, e a canela doce com que viu polvilhada a sua vida. E fechou o caderno. De linhas. De rascunhos quase esboçados. Não o voltará a abrir.

Fechou-se doce e suavemente. Não se voltará a abrir.

Quem te quer mudar
Não te quer conhecer


Espanto

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Apressou a passada rumo à melodia que a cativava. Sentia os passos colados ao passeio, o plástico das solas a pegar-se à calçada ruidosamente. Ainda a tempo, repetiu entre dois fôlegos sorridentes que se desprendiam em cada gesto.
Sentou-se no chão. Entre os demais que a ataram com cordões leves de ternura e tecidos numa fábrica de palavras genuínas e sentimentos raros. Importados directamente do país dos abraços, escondido no fundo de cada um de nós. Já sentada estendeu as pernas, abriu o sorriso e esperou. Não muito. Um cheiro de azul veio do fundo de si. Cheio de sorrisos velhos pouco guardados em peitos ansiosos. E o som, que entrou em cada palavra cantada como se uma fábula mágica a transportasse numa bolha de luz para a infância de mãos dadas. E já nada mais importava ... apenas aquela magia, aquele tudo. Ficou, ficou, quis ficar.
Só depois veio o medo de não conseguir guardar a memória suficientemente bem no baú da lembrança. De a memória se esvair em areia fina e fugaz. De não conseguir saborear de longe o travo doce da fantasia feita mulher.

Voltou mais tarde, agora sem abraços e fios ternos. Mas com velhos rostos calmos e serenos. De luz. Voltou a ouvir a história, contada uma e outra vez. E mais outra. E voou, deixou um rasto de felicidade escondido no bolso da alma, e percebeu que nunca esse rasto seria lama ou areia, permaneceria firme no tempo, seguro pela mão dos sorrisos que colheu.
Recolheu as asas. Nos seus olhos, todas as lágrimas de azul se desfizeram num arco-íris ainda por inventar.
Beijou os restos da noite. Sorriu e voltou a ouvir os sapatos a ranger no passeio. E depois?


Hoje quem acordou na minha carne?
E que sonhos roubou
Na madrugada de um dia que já passou?


Fechamento

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Há dores frouxas e desvanecidas que me irritam, me fazem engasgar de sorrisos e fúrias. Afinal, é o que sou, mesmo, entre lágrimas e sorrisos, um amontoado de dores de parto mal digeridas. Às vezes. Nas outras vezes sou a montanha de desprezo que insensivelmente ergue a mão e destrói os castelos solidamente construídos. A dois. Ou a três.
Vejo de mais e queixo-me da falta de visão dos outros. Por isso me fecho, me rodeio só de mim. Para quê dar um passo em qualquer outra direcção que não seja esta minha? Acendo outro perene cigarro, e o fumo esconde-me, mesmo de mim. Assim seja, ámen!
Estou fechada para obras de remodelação interior. Conto reabrir num dia de sol.


crescer é ter contacto com a morte
é ver no dia a dia a sua sorte
tomar asas
desaparecer com o vento


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  • de eu vim de outra esfera
  • pessoa pensante cheia de ideias e dúvidas
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