Saudade

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Rabiscou a folha de papel, linhas azuis, e ela que odiava folhas de linhas.
Tentou encontrar ordem nas palavras que arrojadamente se desprendiam da caneta, e por momentos nem as reconheceu, pareceu-lhe ter escrito quase numa língua estrangeira.
Reparou que não dirigia a escrita. Não dirigia porque não a comandava, e não dirigia porque não a endereçava. Deixou, libertou simplesmente esse fio insaciável e quase incontrolável.

O vazio. Despejou o vazio, e quanto mais leve se tornava o ser, mais luminosa sentia a manhã disfarçada de noite. Tudo se podia dizer, era como um jogo de crianças, porque não o dizia a ninguém, quase podia deixar as palavras brincarem consigo. E deixou, disse, ouviu, e leu. Cada palavra doía um pouco, enquanto castigo e enquanto redenção. Deixou-se ficar, embalada pela plenitude de se reconhecer.

No fim, alcançou a paz de saber que a sua mão teria sempre outra mão para sentir ...

Eu queria tanto ser
mas não houve tempo
Foi como um soco vazio
Na pressa de viver
o corpo quente tornou-me o sangue frio
São carris que me prendem aqui
à velha casa onde tudo é igual


Cansaço

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Estou ... cansada de tudo o que me soa a falso, de espelhos deformados que me mostram quem não existe. Estou a ficar completamente exausta da tua figura frágil. E tu, aí ao fundo, que te escondes na sombra dela, podes também ficar aí enterrado.


Há quem viva escondido
A vida inteira
Domingo sabe de cor
O que vai dizer
Segunda-feira


Equivalência

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Trocam segredos escondidos pela claridade do sol que quase os cega. Simplicidades que apenas ganham brilho partilhadas, escondidas, adivinhadas, metamorfoseadas em olhos risonhos.
E o toque, ansioso, trémulo, pálido, fogoso, misto confuso de sede e fome, e querer e medo, e tudo o que as palavras nunca dirão. E a pele, nervosa, quer ser natural, mas trai-se, como os olhos se traem, sendo verdadeiros, querendo. Simplesmente querendo voar.

Ela riu-se. Ele sorriu. E tudo o resto apenas disseram no olhar. Um toque bastou, a porta escancarou-se e as aves finalmente soltaram-se. Ecos de risos, murmurados, sussurrados, envolventes. Ele riu-se, agora sem medo, e ela leu-lhe o peito aberto, esperando.

Que enganem o tempo, que saibam as cores das nuvens que decidem o tempo, que passem as portas verdes, que se percam quando se encontrarem, que brilhem e alumiem o limbo da incerteza, escreviam os anciãos, com uma pena quase gasta, quase reluzente.

Dois objectos.
Para que debaixo do chão
Onde já não tens ar
As fogueiras continuem a arder
Ao luar
E as caras de frio
Se transformem em pedra


Serenidade

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Querida Romã:

Sabes bem como te temo. Sabes que só de adivinhar que um dia entras por aquela porta e te instalas confortavelmente no sofá improvisado, as minhas pernas tremem e não consigo juntar mais que dois raciocínios. Por outro lado, minha cara companheira, só de pensar que um dia transporás essa mesma porta, se me esvazia a alma e me inunda a tristeza da tua partida. Em suma, tanto te quero como te temo. Sim, entendes agora a minha inconstância?
Se ficas, morrem as danças ao luar, se partes, morrem as estrelas que salpicam de alegria o luar, e sem luar não podem haver danças.
Reencontro-te aqui, pois não partiste de verdade. Sabes? Por vezes parece-me que a tua face se encerra em condescendência, quando de facto sinto que é apreensão. Dás-me e tiras. Não, não dás, nem tiras, parece que o teu destino foi traçado muito antes do meu.
Fazia-me falta um abraço, daqueles que me diriam, baixinho, que não fiz figura triste e que não me abandonarás. Só que nem sei se alguma vez estiveste realmente cá nestes meses frios. Chega o calor, e a tua beleza ultrapassa-me de longe. Abraça-me ... só isso. Pode ser à distância. Se chegares a uma qualquer janela, agora mesmo, vês a lua? Eu vejo! Então vai lá, eu espero, e se pensarmos uma na outra ao mesmo tempo, estamos perto.
Até já!

Sinto uma calma estranha
Que em mim se entranha
E deixa descansar


Despedida

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Deixou deslizar os cabelos por entre os dedos. Olhou-a nos olhos e disse, simplesmente, tenho medo.
Medo. Terror, suspeição, pânico, metamorfose de borboletas no estômago, a cada beijo e a cada abraço, a cada toque, a cada adeus.
E em cada passo, um braço que o puxava para trás, que o arrancava do abraço mais longo, que o arremessava contra uma parede invisível. Daqui não passarás, mais que isto não serás capaz de dar. E sempre os mesmos acordes roucos a repetirem-se e a ecoarem num misto de harmonia e caos.

Era de noite que cada minuto se demorava no relógio, se aninhava por entre os ponteiros e se fazia maior que cada dia passado. Era de noite que as sombras se avolumavam e se agigantavam, erguendo-se nas paredes nuas e frias, cal despejada e não acariciada. Quarto não vivo, quarto dormitório. Quarto cama, quarto sono.

E foi de noite que o adeus se prolongou para além do suportável. Porque as vozes, essas, gritaram mais alto que o abraço dela, e que a simples voz dela, que apenas lhe poderia ter repetido, desde então até hoje, o mesmo som, amo-te.



A cidade está deserta
E alguém escreveu o teu nome em toda a parte
Nas casas
Nos carros
Nas pontes
Nas ruas
Em todo o lado essa palavra
Repetida ao expoente da loucura
Ora amarga
Ora doce
Para nos lembrar que o amor é uma doença
Quando nele julgamos ver
A nossa cura


Espanto

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Contou os passos e perdeu-se a meio da conta. Foi surpreendida pela abertura do céu, pelo ar que teimava em abrir-lhe os olhos e mostrar-lhe um azul puro incandescente de rosa quente a esvair-se em noite breve. Os passos pareciam quase risonhos, enquanto sentiu o abraço do dia. Entendeu finalmente o fim. Quase parecia que todas as peças se haviam combinado para esse único momento de luz, pura e desprendida.

A estrada pareceu-lhe cheia de coisas novas prestes a serem descobertas, e o sorriso que se instalou não era apenas um repuxar de lábios, mas vinha e jorrava das marés do coração, calmas pela compreensão quase nirvânica. Era a paz... Intangível e quimérica, mas era a paz.

O fim. Pegou na extremidade do ponto final, sentiu-a entre os dedos, reconheceu-lhe o rosto, os olhos que já tudo haviam dito e que agora se remetiam à trivialidade. Afagou o ponto final, que afinal era um ponto final nesse amar cheio de distância. Esquece-me, tinha-lhe dito ele. Nunca, respondera-lhe ela. Mas hoje, esse nunca rodopiara no ar e fez-se concreto, não em esquecimento, mas em aceitação. Era um nunca não de não amar, mas de não poder. Colou o ponto final numa parede azul, cheia de fotografias verdes e vermelhas, rugosa e a chamar a felicidade. Disse-lhe adeus, enquanto as últimas lágrimas se confundiram com um sorriso.
E o melhor é que aprendi
A minha luta é por aqui
Voltamos a pisar o chão


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