Desconforto

0 comentários

Cheirava a vento...

Foi o primeiro indício de terras estranhas que conseguiu memorizar quando desceu do autocarro. Cheirava a vento, mas não era o mítico aroma da mudança. Era o cheiro da exacta mesmitude.

Os passos tentavam ser seguros, mas o olhar prendia-se nos letreiros e nos nomes das lojas, buscando pontos de referência futura. Vou perder-me, pensou, quando os passos abrandaram. Na montra de um café encontrou o reflexo. Estava igual ao que encontraria num outro qualquer vidro, os olhos, talvez mais cavados, perscrutavam um mínimo sinal de diferença. Nenhum.
Recordou os passeios, iguais. As pessoas, iguais. Os cheiros, iguais. As palavras, iguais. Mudava apenas a cor dos autocarros e os nomes neles escritos.
Um homem aproximou-se, cara lavada mas não barbeada, olhos ainda mais cavados, sorriso morto na última semana por uma navalha chamada engano, esboçou um cumprimento e esperou.
Aproximaram-se. Está meio desorientado, diz o homem mais cavado. Não sou de cá, concluiu o outro, franzindo o sorriso desconfiado. Mediram-se, palmo a mais, palmo a menos. Barba com barba, um mais alto e cheio, outro menos alto e claramente mais magro. Vai para onde? Os olhos do estrangeiro perderam-se na questão. Não sei, ouviu-se dizer sem espanto. Não sei, ouviu o homem que se aproximou e também não se espantou. Tirou um maço de tabaco do bolso e ofereceu um. O estrangeiro aceitou, não acendeu o isqueiro à primeira tentativa, e quando aspirou o fumo desfez-se numa tosse ingénua. Isso vai mal amigo. Nem imagina como... e colou os olhos cavados no asfalto igual.
Mediram-se novamente enquanto fumavam em silêncio. Apagadas as beatas, o homem ainda mais cavado resmungou algo sobre o tempo e a chuva, o estrangeiro assentiu em monossílabos e finalizou, é o que dá termos o corpo e a alma a comandar a chuva. Pois paciência e boa sorte, afastou-se o homem mais cavado do cigarro oferecido.

O estrangeiro viu-o afastar-se. Sentiu frio e o cheiro do vento insinuou-se até ser insuportável. A mão na face e percebeu que era uma lágrima primeira, depois uma segunda e uma corrente de gotas pesadas a atingirem-no violentamente. Olhou o céu. Vinha aí tempestade. Veio a tempestade, até que as suas lágrimas fossem diluídas na chuva que encerrava em si.

... já não cheirava a vento.

Tenho uma voz que é mediana e tenho sonhos
Mas sem maneira de atingir dias risonhos
Não tenho os pés no chão mas tenho fantasias
Coisas concretas não conheço e tenho dias
Em que a maneira de acordar é com lamentos


Mecanismo

1 comentários

Deixou o calor do lado de fora do corpo enquanto se tentava encontrar do lado de cá do espelho. Quando o calor se viu afastado tão rudemente do corpo que o alimentava, desfez-se amargamente e o céu chorou.

Descalçou o tempo dos pés e pôs o cansaço de lado. A mão em forma de concha colou-se ao ouvido, todos sabem a melhor forma de verdadeiramente se escutar. E então os murmúrios sucederam-se... nem monótonos nem entusiasmados, nem suplicantes nem exigentes, nem nefastos nem egoístas. Apenas descaracterizados, indiferentes e iguais a tantos outros que escutara ontem. Anteontem. Antes disso. Todos os dias antes deste, desde que resolvera tentar ouvir. Indiferentes e iguais, como todos os que ouvirá amanhã e depois. Eventualmente um murmúrio mais forte surgirá. Será dito como se escrito fosse, terá cor de canção e cheiro a olhos que ainda não viram o mundo.
Quando esse murmúrio ausente se tornar voz concreta, fechará os o
lhos e tentará compreender. E desejará não ter ouvido todos os pedidos e todos os desejos da espécie humana, porque saberá que não foi das suas mãos que o Homem nasceu, mas que as suas próprias mãos estão atadas pelo Homem que brinca aos deuses e aos Homens.
Nesse dia, Deus secará. Mas escutará. E valerá a pena.


Ao ver meu quarto aberto alguém entrou
Só no acender da luz vê que eu não estou


Sofreguidão

0 comentários

Fugiu-lhe o sorriso dos olhos como se de uma bola de sabão se tratasse. Quase o viu pairar sobre a sua cabeça enquanto o rosto se encerrou e turvou em curvas rígidas.
Procurou acidamente um qualquer sinal de trânsito, uma indicação, uma velada seta, um qualquer indício, fosse qual fosse, apenas buscava direcção.
Apaziguou o silêncio de respostas com o café a escaldar-lhe na garganta cansada de bons dias e boas tardes que puxavam cortinas sobre o medo da multidão. Queria andar, andar até os pés se recusarem a mover mais um passo que fosse, queria andar sem sair do mesmo sítio, apenas para descobrir que as bolas de sabão não dependem de mais nada senão dos olhos de quem a vê. E é estranho ter tantos pares de olhos a olharem-no sem o ver. E olham, vêem um corpo, sorriem e insinuam, mas são tijolos de alma. Pedaços de pele que puxam e esticam músculos em sorrisos. Mas que não sorriem.
Abanou a cabeça enquanto enterrou a memória da cidade a adormecer no recôndito das paisagens que nunca haveria de esquecer. Fechou os olhos, como se a imagem gravada ficasse mais nítida por isso. Era o sono a vir.

E é de braços descaídos que vejo
O sol desaparecer


Sobre mim

  • alter-ego Green Tea
  • de eu vim de outra esfera
  • pessoa pensante cheia de ideias e dúvidas
  • perfil

Últimos crimes

Ficheiros arquivados

Criminosos em flagrante

Criminosos em grande estilo

Provas do meu crime

Crimes autenticados

Estou no Blog.com.pt

Crimes com som

A ouvir

As + ouvidas da semana

O meu last.fm

Inspirações

Têm seguido o rasto ...

Responsabilidade

The animal rescue site
The child health site
The hunger site
The rainforest site
As bijuterias da Maria
Support Amnesty International

A história dos dias


ATOM 0.3