Cheirava a vento...
Foi o primeiro indício de terras estranhas que conseguiu memorizar quando desceu do autocarro. Cheirava a vento, mas não era o mítico aroma da mudança. Era o cheiro da exacta mesmitude.
Os passos tentavam ser seguros, mas o olhar prendia-se nos letreiros e nos nomes das lojas, buscando pontos de referência futura. Vou perder-me, pensou, quando os passos abrandaram. Na montra de um café encontrou o reflexo. Estava igual ao que encontraria num outro qualquer vidro, os olhos, talvez mais cavados, perscrutavam um mínimo sinal de diferença. Nenhum.
Recordou os passeios, iguais. As pessoas, iguais. Os cheiros, iguais. As palavras, iguais. Mudava apenas a cor dos autocarros e os nomes neles escritos.
Um homem aproximou-se, cara lavada mas não barbeada, olhos ainda mais cavados, sorriso morto na última semana por uma navalha chamada engano, esboçou um cumprimento e esperou.
Aproximaram-se. Está meio desorientado, diz o homem mais cavado. Não sou de cá, concluiu o outro, franzindo o sorriso desconfiado. Mediram-se, palmo a mais, palmo a menos. Barba com barba, um mais alto e cheio, outro menos alto e claramente mais magro. Vai para onde? Os olhos do estrangeiro perderam-se na questão. Não sei, ouviu-se dizer sem espanto. Não sei, ouviu o homem que se aproximou e também não se espantou. Tirou um maço de tabaco do bolso e ofereceu um. O estrangeiro aceitou, não acendeu o isqueiro à primeira tentativa, e quando aspirou o fumo desfez-se numa tosse ingénua. Isso vai mal amigo. Nem imagina como... e colou os olhos cavados no asfalto igual.
Mediram-se novamente enquanto fumavam em silêncio. Apagadas as beatas, o homem ainda mais cavado resmungou algo sobre o tempo e a chuva, o estrangeiro assentiu em monossílabos e finalizou, é o que dá termos o corpo e a alma a comandar a chuva. Pois paciência e boa sorte, afastou-se o homem mais cavado do cigarro oferecido.
O estrangeiro viu-o afastar-se. Sentiu frio e o cheiro do vento insinuou-se até ser insuportável. A mão na face e percebeu que era uma lágrima primeira, depois uma segunda e uma corrente de gotas pesadas a atingirem-no violentamente. Olhou o céu. Vinha aí tempestade. Veio a tempestade, até que as suas lágrimas fossem diluídas na chuva que encerrava em si.
... já não cheirava a vento.Tenho uma voz que é mediana e tenho sonhos
Mas sem maneira de atingir dias risonhos
Não tenho os pés no chão mas tenho fantasias
Coisas concretas não conheço e tenho dias
Em que a maneira de acordar é com lamentos
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