Vem um frio de mansinho que se instala, rudemente. Engole-me as mãos, os pés, o pescoço e finge-se de carícias. Depois, envolve-me e mastiga-me e continua a digerir-me como se se alimentasse de mim.
Tenho sono, peso-me para me sentir, mas os dedos falham em reagir. Tenho frio. Sou frio. Estou fria. Ao mesmo tempo, o inverno de mim apodera-se do calor que teima em se anunciar.
Este é um calor ténue, diminuto, quase um fósforo, apenas um quase fósforo. E o frio, manso, quase amigável, reconhece que um perigo menor se avizinha, um quase perigo, um quase nada.
O banquete prossegue e a minha prisão de gelo pouco tarda. Nunca tarda, nunca falha.
E depois, pela fosca luz da madrugada (ou será o entardecer mais longo, como saber?), vens tu. Acender luzeiros em vez de fósforos, porque o amor, tal como o gelo, serve apenas para queimar.
A luz continua presa ao tecto
Por mais que se tente tirar
Está alta de mais
Ou encandeia os olhos
Ou queima quando se toca
Parece que sabe queimar
De um lado, um calor confortável de quem sabe o que espera.
Do outro, a pele que se arrepia por antecipação.
De um lado, o olhar sereno e confiante de quem sabe que entregou tudo, para além da vida e da morte.
Do outro, uma hesitação de quem fica em suspenso.
De um lado e do outro, a certeza de se querer ser apenas uma.
Dá-me a tua melhor faca
Para cortarmos isto em dois
E amanhã esquecer