Dúvida

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Atravessou o branco que feria os olhos. Apenas para entrar num outro branco, mais cego e quase asséptico. Túneis de luz, nada mais. Nunca sentira luz a mais, nunca soubera como pode doer o simples acto de andar, nunca o medo se infiltrara tão fundo na sua nudez desprotegida, apenas coberta de tecidos.
Sabia, porque há muito o adivinhara, ser aquele o seu caminho. Sabia e, acima de tudo, sentia. Andava, os passos prosseguiam, mas era como se o corpo apenas deslizasse, como se a sua vontade quase não estivesse nas suas mãos. Mas estava, e era apenas pelo querer com medo de querer, apenas pelo voo onde a queda se espera, apenas e tão só pela magia de sentir e saber, que o branco não se dissolvia, e se colava, insinuando-se em cada centímetro como a primeira das peles.
Apenas o branco imenso. Indefectível e imperecível. Quase sufocante ao mesmo tempo que libertador e salvador. E o ruído surdo dos passos sobre o chão branco. A ausência de eco. A rouquidão da voz há demasiado tempo encerrada na caverna do corpo.
E o tudo que lhe coube dentro de si.

Veio com pés de veludo macio resgatar a luz, veio trazer-lhe a companhia da cor e do som. Trouxe consigo o riso e a textura da claridade viva. E o branco fez sentido …

Já tenho tão pouca gente
para me encontrar


Escolha

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O céu tinha acabado de se vestir daquela cor azul que raia o sonho no momento em que os candeeiros se acendem anunciando à tarde o seu fim. Parecia que o firmamento tinha descido à terra por breves instantes. Movido por uma insaciedade sua, uma incerteza ofegante e um querer mais forte, pegou nas chaves e entrou no carro rumo ao nada da estrada. Sem pressa nem destino, saiu dos limites da cidade, da certeza conhecida, e continuo, persistiu. Certamente algo lhe havia de apontar o caminho, enquanto a monotonia dos pneus no alcatrão o embalava numa doçura inerte.
Alcatrão. Terra batidas e folhas crepitantes a cheirar a outono. Pedras, pedrinhas e restolho. Apenas comida para a voracidade da viagem que se quis longe.
A noite já se fechara num caracol de escuridão e silêncio quando travou bruscamente e sentiu o carro a vociferar intempestivamente. Parou, tremendo da ponta dos pés que não lhe obedeciam, à ponta dos cabelos espetados. Aproximou-se, incrédulo e balbuciando apenas murmurantes sílabas. Como? Eu? Tocou na tabuleta em forma de seta, branca e reluzente, com o seu nome inscrito a tinta negra, onde os faróis tinham reflectido furtivos. Percebeu que nada acontecia por acaso. Abandonou o carro, documentos, chaves, tudo o que o ligara ao antes que iria terminar, findara já. Enveredou inseguro pelo bosque escuro, sentindo os seus passos sobre chão nunca antes pisado. E as vozes assaltaram o cantinho do medo, ao mesmo tempo que o chamavam.
Avançou. Encontrar-se-ia, algures.


se o meu peito diz coragem
volto a partir em paz


Medo

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Por saber de mais, por sentir de mais, por ser de mais.
Há um peso imenso que apenas espera, impaciente e impotente. Espera ser aliviado da escravidão que teme. Da dor que não vê na luz que não sente. Abre os braços, lentamente, deixa-te cair no fundo que não tem fim.
Deixa-te apenas saborear os traços inacabados da perfeição que apenas ousaste sonhar e que preenchem esses espaços que sempre aceitaste em branco. Inunda-te de ti, do que tens de mais profundo e remoto, do que guardas a sete chaves dentro desse medo feito de madeira velha.
É uma caixa antiga, sei-o bem, tão certa e fiel desde o dia em que olhaste a luz e pensaste que era bela, e contemplaste a noite e te vislumbraste além desse pó fino emanado da atmosfera e que te seduz sem explicação ou compreensão. E por conter todos os segredos desse teu mundo fechado, por ser a mais funda das caixas e a mais íngreme das muralhas, esmaga-te e sufoca-te, enquanto te dá apenas o ar mínimo e necessário para te manter vivo. Dia após dia, após hora, após minuto, após segundo, bem sabes que o tempo é tão relativo como o ser humano.
Caixa de segredos e chave da leveza que não sentes, ela pensa em ti mesmo quando a tentas afastar de ti, da tua memória, das tuas mãos que escrevem, tecem, tocam e não chegar sequer a sentir. Cega-te tanto que só a ela vês na paisagem que pintas por ela. Por ele. Por medo.
E não tens medo de ficar?

e aqui tenho a cicatriz
tão perto do sal que me queima a pele


Amizade

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Há fumo no ar, denso e opaco, entra pelos pulmões e carrega-lhe o peito. É lento o turbilhão sem cor em que o tempo se transformou, metamorfose aguda e severa, daquelas que apenas se dão quando os sentimentos afloram a pele e flutuam nos poros à espera duma brisa bondosa para os fazer viajam na direcção mais conveniente.
Não há limites para o vazio, para a chuva que o dissolve em pálidos pedaços de si que alguém despedaçou. Ele é tudo, sendo o nada. O punho fechado da agonia encerra a sessão de tribunal. Fim. Veredicto dado, espada firme que o trespassa em lâminas de sangue que não o foi. Morre ele mais um pouco, perece a esperança quase de vez. E o sol desaparece, chove diluvianamente, o fim do mundo galopa para ele em golfadas de ar pútrido. Não há golpe final, não há misericórdia, fica em restos, porque de restos o fazem.

E vêm os sorrisos, os cafés, os abraços, vêm todos os que o circundam, porque o amam, porque nele se apoiam, nele se erguem mais alto e mais forte. Ele é a pedra forte mas suave, o ombro onde todas as palavras encontram resposta, onde as lágrimas se permitem escorrer, onde as sabedorias se partilham. Ele é o casulo onde a larva da solidão injustamente se alimenta sem ser convidada.
E ele merece tudo.


treme o chão, tu não
(dedicado, sim, dedicado a ti meu amigo,
porque acredito que não choverá para sempre nas nossas vidas,
e que o sol te abraçará com a sua ternura e calor
como mereces, tal como tu irradias presença de espírito
e sabedoria cheia de compaixão)


Duplicidade

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Acendeu o cigarro e sem ver, olhou o fumo que dançava contrastado com a escuridão. Aspirou lentamente a morte no silêncio quebrado por pequenos sons de nada. E o nome a latejar, sempre, espreitando pelas muralhas rasgadas pela insónia à espera de ocupar o seu devido lugar. "Curioso como os nomes se repetem na nossa vida", pensou enquanto saboreava a sua amarga presença.
Só o roçar do corpo cansado nos lençóis e a respiração lenta a fazia ter a certeza de estar acordada, e sabia-o bem. Sempre o nome. "Boa viagem", pensou, ao sabê-lo de partida. Se bem que já tinha partido há quarenta e três dias. Se bem que nunca tinha verdadeiramente chegado. E o sufoco da lampejante verdade esfriou a noite, o quarto, o corpo, e só quis entregar-se ao sono e esquecer o amanhã.

O sol acordou-a tarde ... foi gentil e cuidadoso, suave e estendeu-lhe um doce abraço. Esfregou os olhos como as crianças, pulou da cama e foi viver. Sorrisos distribuídos quase gratuitamente, apenas a custo de reciprocidade. Trocou palavras, acenou versos e rimas como se a noite se tivesse apagado de si com a velocidade de um beijo fortuito. Rodopiou na realidade e ergue-se acima dela. "Boa viagem", pensou, quando o imaginou na estrada a caminho da distância por percorrer. E sorriu, estranhamente genuína. A leveza das palavras dissolveu-se num suspiro que tombou o passado e fez o presente estender-se à sua frente.
E soube que não era ele o único a viajar, também ela tinha iniciado a sua caminhada ... e esperou pela noite.


Eu fui ao fim do mundo, vou ao fundo de mim

(fotografia de Gonçalo Ribeiro)


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