Vertigem

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O calor ameaçava ter vindo para ficar. Embaciava os olhos e turvava o raciocínio, esse exercício raro que lhe acordava o espírito. E foi nessa labareda que a parecia assar que acordou. Um banho rápido, um arranjar ainda mais rápido, aproveitando apenas a brancura seca das paredes para se encostar e respirar fundo. Mais um dia. Hesitou ... meio a custo, acabou por esboçar um sorriso.
Entrou no elevador, carregou no botão amarelo que a conduziria à realidade. Só se sentia no mundo quando a porta de vidro grande se fechava atrás de si, com um clang bruto que sempre a incomodava mas não o suficiente para a fazer acompanhá-la graciosamente com o braço.
Algo lhe chamou a atenção. Não soube dizer o quê ... talvez a descida estivesse a ser mais lenta, mas parecia-lhe que deslizava pelos cabos a uma velocidade muito maior, quase se sentia tonta.
Finalmente parou. A medo, que não soube explicar de onde tinha nascido, empurrou a porta grande e esperou que ela fechasse, amortecendo-a no fim.
Na rua, tudo na mesma. Mas onde ia ela buscar a sensação de estranheza? Até que percebeu. O coração batia desenfreado, quase lhe pareceu um ataque de pânico, num ápice, os carros ganharam velocidade e rompiam o ar num ruído feroz, o passeio flutuava sob os seus pés, e uma mão invisível empurrou-a com tanta força que a fez embater no chão pegajoso e pisado. O calor, sempre o calor. A luz, a luz feria os olhos, o corpo, tudo lhe doía. Parecia que o chão era ácido, era móvel, era estranho ao tacto. E no meio dos gritos mecânicos e inertes, a chuva e o silêncio.
Olhou em volta.
E então compreendeu ...
acordar é bom, mais fácil é dormir
[terceiro DESAFIO]
[desafio há muito respondido --> aqui]


Salto

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Na rua ... tantas ruas, mas esta era diferente, apesar de a conhecerem desde que se conheciam também, apesar de nunca a terem visto.
Passos apressados e respiração ofegante, dois pares de pernas a flutuarem na calçada, na ânsia de chegarem onde nunca ninguém os vira chegar. Duas mãos dadas e sorridentes, dois sorrisos que mais parecia apenas um. Pressa, sempre a pressa de chegar, ou de viajar.
E veio o medo, as interjeições não ditas nem suspiradas, mas que picavam o coração, e logo agora que iam voar, logo agora. Nunca nada pode ser tão perfeito como este momento, e as dúvidas a tornarem o ar denso. Para trás, para trás, pensavam, novamente em sintonia, ainda que não se falassem, ainda que nunca se tivessem falado, e ainda que só o silêncio tivesse falado. Fez bem, era um orador mais experiente nestas coisas do coração humano.
Chegaram. Não ao fim da viagem, antes ao verdadeiro início, ao ponto de não retorno. Era agora.
Olharam-se, pela primeira vez desde que as mãos se tinham entrelaçado para não mais se largarem. O medo espelhado nos olhos de ambos. A incerteza num rasgo de lucidez. Mas a lucidez pode assassinar sonhos, e afastam-na num gesto seguro. Decidiram.
Olham o infinito, ela pasmada com o imenso abismo saído de um livro para colorir, ele a idealizar e arquitectar engenhos de voo. Olharam-se pela segunda vez. Respiraram fundo, lentamente, a inspirar coragem para o salto.
- Confias em mim?
Um aceno de cabeça.
Olharam-se pela terceira vez, e nunca mais desviaram o olhar …


e com ar na cara vou sentindo desafios que nunca ninguém sentiu
talvez um dia me encontre


Silêncio II

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Em resposta a um desafio, lançado --> aqui.


(...) Foi então que se apercebeu do silêncio na cidade que nunca dorme...
Escutou ... Deixou-se continuar sentado, apenas simplesmente à escuta desse silêncio, puro e imenso, que se fazia ouvir em vibrantes tonalidades. Dançava o silêncio com as espirais de fumo que se entrelaçavam nas estrelas ainda visíveis.
Abriu muito os olhos, como para deixar entrar todo o quadro em si, todos os pormenores. Nunca tinha visto o silêncio, e agora ali estava ele, palpável, tangível.
Descalço, pisou a pedra fria. Um arrepio fugaz. Soube-lhe bem o frio, afastou o fumo dos olhos cansados, torturados pela lua e pelas estrelas que lhe acenavam de tão longe. Tacteou a parede nua, faltava-lhe o equilíbrio, sempre lhe faltara qualquer equilíbrio, de compreender, de amar, de ser, e sorriu tristemente.
Agudo, o pensamento tornou, investiu implacável, penetrando o silêncio e rasgando as estrelas que se preparavam para dormir. Já o conhecia bem, o pensamento, tratava-o por tu, numa facilidade exígua e concreta. Mas não conhecia o silêncio, nem o seu poder.
Antes de se render, procurou e encontrou o candeeiro, estivera sempre lá ... E a luz, mínima noutras madrugadas, rompeu o pensamento, galgou as paredes e aqueceu-lhe o corpo. Silenciosamente.
Dia. Claridade. Saudades da lua e das estrelas, sempre, no peito o doce adeus das estrelas e a calma ternura da lua. Mas pela primeira vez amou o sol. Em silêncio.


a luz continua presa ao tecto
por mais que se tente tirar


Depois

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- ...
- Depois
- ...
- Depois

E depois?
Depois de uma amálgama de coisas, sim coisas, que nada são senão coisas, que sentem e fundem e roem e escorrem, quando é depois?
Depois, o depois é uma falácia jeitosa e perversa. Depois do fim, não há depois. Há o agora, e agora?
Deixou a dormência nocturna, que lhe fizera pesar o corpo que jazeu frio, despiu as lágrimas e escureceu. Era apenas mais alguém no meio dos sorrisos que não encontrou e não sentiu.



O mundo é já aqui


Omissão

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Árvores. Sempre gostara de árvores, frondosas, verdes e douradas, generosas e pacíficas, pacientes e dóceis.
Sempre se refugiara na sua sombra fresca e cúmplice, na sua compreensão tácita e inequívoca.
E mais uma vez as procurou, as abraçou num gesto que não se via, mas que inundava todo o ar. A súplica. De orientação, de força, de um sinal, de qualquer coisa que lhe arrancasse a alma do vazio maior que nunca pensou conseguir conter dentro de si.
Quis chorar. Quis deixar-se ir, desfraldar a roupa e rasgar-se, arrancar a pele e cair no chão, arranhado o corpo e desmaiada a alma. Quis ignorar os olhares alheios que notavam a sua presença pouco habitual. Mas as lágrimas não caíram, ficaram presas, reféns da incredulidade e da derrota. Nada, nada do que tinha sido voltaria a ser. E aí, só aí, ao olharem o mar cruzado pelos carros que rompiam o ar em velocidade, só aí as lágrimas vieram. Primeiro uma, um suspiro, depois muitas e muitas mais se seguiram.
Cobriu os olhos com as mãos, mas já nada conseguiu esconder. Era um rio que corria para o mar, o sal das lágrimas a unir-se ao sal do mar, o cheiro do frio em si a buscar o cheiro do mar ali. E tombou, de joelhos, e nada mais via, nada mais, nem as pessoas que passaram indiferentes, nem as crianças que sorriam sem porquês. Era tudo água e sal, e numa dessas gotas, que beijou a calçada empedrada, viu o seu reflexo.
Olhou o mar de frente. Era ali que agora estava. Pegou nos restos de si. Acendeu um cigarro, passou a mão pela cara. E voltou.



agora desisto
sempre que eu insisto eu esqueço que existo


Espera

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Nas gotas que não caem do céu encontrou um sorriso.
E pareceu-lhe momentaneamente que o tempo parava. Indiscutivelmente a perder a pouca sanidade mental que alguma vez tivera, riu-se de si para si, só para si.

Movimento, só a existência de movimento lhe devia ter bastado para perceber que o tempo não pára, não se coíbe de ser inexoravelmente fluído num percurso que ainda está por conhecer. E havia movimento, carros a esfumaçarem a cidade já cinzenta, sons de passos nas calçadas, enfim, tudo fervilhava.
Placidamente, a mesma sensação de dormência, de paragem inexplicável e intransmissível a toldar-lhe o peito. O tempo parou. Não está mais lento, a ampulheta não desliza mais lentamente, simplesmente parou. E no meio do tempo parado, o movimento, como que uma fotografia animada. Soube-o com uma certeza lancinante.

À sua volta ninguém se tinha apercebido do milagre do tempo parado, como viria a ser denominado. Não havia morte, não havia vida, toda a humanidade estava agora suspensa num momento que não acabaria nunca nunca nunca. Os relógios explodiram, os conta-quilómetros dos carros desorientaram-se. A maquinaria da ciência reduzida à inflexibilidade das impossibilidades. Não há tempo, não há distância.
Foi só quando se aperceberam que nos rostos não nasciam rugas que a estática mutação dentro deles os apavorou.
Ela deixou-se ficar ... tinha agora todo o tempo, o que quis e o que não conheceu. Ficaria eternamente à espera ...
Todas as esperas, todos os anseios, não fazem sentido agora que o tempo se decalcou na pele de quem o vive. Esperar para quê?


... quando não estas a olhar para mim eu desapareço ...


Perplexidade

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Um passo.
Mais outro, chegou. Pela janela a lua cheia invade-lhe o recanto que chama de seu.
Há palavras que lhe ecoam, murmúrios que vai ouvindo sem reconhecer a voz. E abraça a lua.
Nunca se deixou acreditar no que não conseguia explicar, sempre se rendeu à racionalidade dos argumentos inevitáveis e claros, sempre preferiu explicar, compreender, dissertar, discernir. Sempre emoldurara a inteligência, não o canudo que a acompanha, sempre fora a sua defesa última, o seu rápido desfecho ante a inevitabilidade da derrota.
Até ao dia em que o sopro lhe bateu à porta, lhe escancarou as dúvidas e acirrou a fé, essa crença inexplicável que para ela sempre fora o máximo de incompreensão e pasmo que pudera suportar.
Deixou-se envolver, primeiro lentamente, visitando curiosa as labaredas de inspiração. Aos poucos, deu por si absorta nessa perplexidade humilde de quem sente. Ainda que não saiba o que sinta.



falo ao mar de coisas que vi
falo ao mar do que conheci
~ escrito mentalmente no caminho de casa ...
~ antes da derradeira vaga de perplexidade do dia


Procura

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Tinham-se passado dias, que pareciam anos e séculos poeirentos. Horas que o crucificavam no silêncio que se escondia no ruído desinteressado e desinteressante da monotonia. O brilho, o brilho dos olhos dela, esse, tinha ficado escondido e ele não sabia onde.
Reviu, mentalmente, todas as linhas escritas e não ditas, todos os sorrisos ensaiados ao espelho para ficarem presos no fundo do seu medo, jazendo amargos e desfeitos. Tinha decorado dezenas de discursos diferentes, palavras que não compreendia, mas que sabia que ela poderia gostar, e tinha lido grandes poemas à luz de velas para não estranharem as suas vigílias nocturnas, as suas insónias inexplicadas.

Anos, dias, meses, o tempo nada é, e mil anos são nada para quem se ama.
Tinham-se passado dias, que pareciam anos e séculos poeirentos. Minutos que a afogavam em panos de angústia e rumores de suores ausentes. Na incerteza do querer de quem quis, deixou-se ficar. Tinha construído uma barreira de tijolos encarnados, e foi pintá-los de azul. Depois pintou-os de branco, porque a última palavra dele tinha sido essa, azul.
Ensaiou olhares prontamente desviados caso se cruzassem, acenos confiantes e mentirosos, e resolveu esquecê-los, porque o brilho do seu olhar a traíria, e lhe contaria o que o seu corpo e as suas palavras negariam.
E a espera findou quando o adivinhou sem o ver, mas não o olhou.
Não a chamou, não soube que sentir perante o seu passo apressado de quem não tem tempo.
Procuraram e encontraram-se, reconheceram-se e respiraram-se. Mas não se olharam, não se tocaram. Renderam-se à certeza de se desencontrarem em lados opostos de uma linha invisível, que os queimava quando se aproximavam.
E afastaram-se, incertos de que o tempo os apaziguasse.

Falo de um amar para dentro, que é virar a dor para dentro


Pressa

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Sempre vestida de negro, e sempre à porta do café onde ninguém entra e se senta para conversar. O olhar doce e a voz meiga e terna condizem na perfeição com a figura frágil e carinhosa que todos vêem. Mas não se lembram dela. E não a recordarão quando a sua velhice avançar apenas aquele pouco mais que a separa da eternidade.
Conheci-a ainda criança, enquanto esperava na madrugada de inverno pela companhia de ir para a escola. Na altura era um bom dia apressado e negligente que lhe respondia enquanto ela velava pelo meu aconchego nos dias de chuva. Um sorriso meio forçado e impaciente, de quem desde cedo não suporta a espera, o mundo era tão imenso e esperava pelo meu abraço.
Depois, passados os anos de criancice, era um bom dia de hábito, de continuidade, quase de piedade.
Passei hoje por ela. As mesmas rugas, a mesma paciência. E hoje não tive pressa. Parei, olhei-a de frente. Pareceu-me gigante, e percebi que era ela, e não eu, quem abraçava o mundo da porta do café solitário. Era ela, enlutada desde que me recordo, que vivia, e não eu, perdida no meio da minha pressa enevoada, baça e ofuscada.
Compreendi que não tinha nada para lhe dizer. E sentei-me no café, a ouvi-la desenrolar contos e sorrisos.
Cá estarei no fim dessa espera


Lucidez

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Risos de criança ... risos em rodopio frenético que o confundiam enquanto mergulhava nas suas memórias. Mirou as mãos velhas e assinaladas pelo passar do tempo que não reparou. O tempo que se esvaiu por entre os dias que hoje recordava, enquanto o livro que sempre trazia para o banco de jardim permanecia inacabado, ou inacabável.
Recordou o seu rosto, que conhecera fresco e rosado, e que tinha partido enrugado e dorido. Saboreou no ar a sua doce presença que sentia sempre, como se só se conhecesse através dela. Nos olhos baços e tristes, um sorriso meio, uma dor suave que só os velhos podem sentir porque amaram toda uma vida. E um sentimento de não pertencer a este tempo em que as crianças não têm tempo para dar a mão ao avô.
Olhou o livro de frente. O velho e o mar. Já o tinha lido, e sentia-se preso àquele barco e àquele mar imenso que era a vida. E teve medo de morrer quando acabasse de ler.
O velho no jardim, que sonhava acordado, e que coleccionava os olhares estranho de quem passava, por ser um velho, por não estar a jogar às cartas. E afastou essa pena pluma que começava a sentir de si. Pena não, pena nunca quis sentir, mas a saudade ... o saber-se vivo e viúvo. Era saber-se viúvo e não vivo. Cheirou o sal no ar. A primavera. O calor, as chuvas, os anos que lhe restavam, ainda que neste dia não soubesse quantos seriam esses anos. E Hemingway, quase o pôde imaginar sentado a seu lado. Ao lado deles.
Dormitou ...
Estava no mar, agarrado a um barco (...)


há sempre alguém que nos faz falta
[segundo DESAFIO]
[e o desafio foi cumprido --> aqui]


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