Volume

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"... Era como se eu fosse maior do que o que sou - como se estivesse todo dentro de algo mais pequeno do que eu - dentro e fora em simultâneo, porque ao mesmo tempo que cabia lá dentro era maior do que aquilo em que cabia - uma espécie de ilusão física - de anulação do volume - ou de inibição do impossível - uma abstracção indizível..."
[Mão Morta - Humano, tirado daqui]

São mãos que cabem umas dentro das outras, seguram-se em frágeis equilíbrios e abraçam com a força de um furacão. É pele sobre pele, dentro de pele, em cima de pele, pele, pura e simples. Mãos e pele. Humanamente frágeis e poderosas, porque nelas tudo principia e tudo termina. Como se dentro fosse fora e fora houvesse uma gruta escondida à espera que alguém encontre as palavras certas. O toque certo. A pele certa. O tudo certo, fora do qual só se pode estar dentro.
Em nós.

agora vem de volta, que eu seguro


Densidade

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"Hoje choveram pedras e nasceram caramelos nas árvores. O chão era de chocolate e as estrelas caíram no chão e dissolveram-se"
(freak)

Sem queimar demais. Sem puxar demais. Encostou o ouvido ao peito da porta para escutar a ausência. E as palavras voaram ligeiras, baixinhas. Complexas, perdidas entre a madeira e os sonhos que matam os dias, devagarinho para ninguém os culpar.
Deixou-se escorregar até ao soalho que o separava da queda. Estarrecido. Dormente. Dorido e quebrado. Cheio de nada. Sentiu o corpo tremer, talvez de fome ou extenuado pela sombra fresca que o embalava em promessas finas e arenosas de um gesto não esboçado.
Abraçou o chão que fugiu por debaixo dos pés, esgueirou-se pelo parapeito da memória até ser pequeno, pequenino, sem o condão pesado de pensar de mais. Reflexos de quando tinha a lua cheia no rosto e o sol em si. De quando sabia quem era e de quando não sabia o que era.
Sentou-se, era um farrapo de pele, ossos, músculos e pouco mais. Era uma fronteira ténue entre a dor e a escuridão. Desdobrou-se, fechou a cara aos tons matinais que rompiam e voltou a encostar o ouvido ao peito da porta. Que não abria. Nem tinha paredes à volta.


não desistas por tão pouco
o amor tem estado perto, és tu quem não estado cá


Incompleto

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Sei que estás longe. Fico a pensar se alguma vez estiveste perto, ou se alguma vez estarás ...
Na noite em que te escrevi não consegui passar as palavras ao papel, por isso fica aqui o esboço.
Preocupa-me não saber se partiste com conveniente agasalho para a minha ausência. Preocupa-me não ter a certeza se descansarás convenientemente os olhos. O mundo é um lugar tão grande para nos cegar e iludir. E nos perder. Parto do princípio que ao leres estas palavras concordarás que nos encontrámos.
Curiosamente sei que a distância que nos é imposta só nos faz bem ... sei que as setas indicam localidades próximas ao lado esquerdo do meu peito, que a velocidade máxima permitida nesses percursos não excede os limites da minha saudade. Sei, e sei que tu também o sabes.
Encontra-te, pega na bússola que trocámos por ter sido utilizada antes de nos ter vindo parar às mãos, e encontra-me.
Desculpa, não sei o que digo, pára de mandar a lua sorrir assim ... até breve.
João



Fala-se demasiado alto para quem está tão longe


Ambivalência

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Virou a ampulheta. Decidira. Colocou-a cuidadosamente na mesinha de cabeceira, junto ao relógio e à carteira. Pensava na ampulheta há semanas ... Olhava para ela, sabia-a na viagem de carro até ao trabalho, escutava-a enquanto o espelho lhe devolvia o cansaço por barbear, e nunca a coragem fôra suficiente para a virar.
Se o tempo se esgotasse ... se ao menos o tempo se esgotasse. Mas não. Sabia demasiado bem que não, o tempo não se esgota. Virou a ampulheta, barbeou-se, vestiu-se igual sabendo-se diferente. Repetiu o seu nome. Os nomes têm esse condão de nos fazer existir, pensou. Olhou-se no espelho, e não ouviu a ampulheta ditar o atraso da melancolia. Rastos de tempo por usar reclamavam a ausência. O tempo novo chamava-o.
Encarou a fotografia do passado. Nem um sorriso tentou instalar-se. Nem uma expressão que traísse a saudade. Só o olhar se deteve por um segundo mais do que necessário. E os olhos olham para onde nós olhámos e olharemos. Olhos servem para olhar. Nem sempre para ver.
E foi a dor que não viu vir que virou a ampulheta.
Não rasgou a fotografia, como havia prometido. Tinha virado a ampulheta.


e não foi assim que o tempo nos fez, e fez assim com todos nós
e não foi assim que a razão nos amou, e fez assim com todos nós


Complexidade

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Entrelaçou os fios nas cascas que restaram depois de ter nascido.
Encontrou restos de fumo presos às mãos, escorregando pelas teias que cuidadosamente tentara apagar. Mas que permaneciam.
Desenhou as sombras nas pedras que pisava simetricamente, apenas para saber que era real. Porque mais nada era real senão o que de si saía. Vivia em si, acordava e adormecia em si. E olhava, sempre o olhar que buscava o que não sabia. A esperança de o amanhã nascer pintado por outras cores, por outras mãos, que não as suas que não eram suas.
Pousou a folha, tinha pintado muito, muitas formas que não existem, muitas cores que vistas assim pareciam esborratar-se e sufocar-se numa folha que não as quis receber. Rasgou-a, mas ela voltou a juntar-se, uma e outra vez, duas e outras vezes, mil e outras vezes. Queimou a folha, mas nos restos fumegantes jazia sempre um pedaço ileso, sempre, que atraía a sim as cores de sempre, os mesmos rabiscos desajeitados, desfigurados. Como num espelho que apenas distorcia a realidade onde não vivia.
Cansada, exausta, morta porque nunca vivera, enrolou-se nas folhas e teias, puxou a casca para cima, deu as boas noites às estrelas, e tentou dormir ... ou acordar.
E o amanhã que nunca chega.


Filhos da confusão
Alinham pelos passos da multidão
Sempre o vicio da estática mutação


Revelação

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Tarde. Mas não tão tarde que fosse hora de os pais estarem em casa, as mães a tratar do jantar, o telefone a rezingar, não, era de tarde apenas. A tarde, com o seu manto vespertino que se desdobrava em horas sonolentas e douradas pelo sol que sabia que era verão, espraiava-se por todo o lado, cabia em qualquer fresta, qualquer janela entreaberta, derramando pózinhos de magia sobre as cabeças das crianças.
Qual flautista de fábulas perdidas, as crianças atentas acorreram ao chamamento. Imperturbáveis, atravessando a cidade ou a rua, a distância desfez-se sob os pés delas, e o parque estendeu-se à sua frente. Mil sorrisos, e o dobro de rostos ansiosos e confiantes. Ele já lá estava, velho como o sol, crestado por ele, vincado pela austeridade dos tempos.
Tratou cada uma das crianças pelo nome, afagou-lhes os rostos e os cabelos. E então mostrou-lhes uma pequena esfera brilhante, luzia como se um pedaço do sol fosse, e até seria, todos sabem que o sol é uma estrela, e nem é das mais brilhantes. Rodopiavam as cores nessa esfera que fascinava os petizes, e para aumentar o espanto, até no tamanho se alterava. As bocas abriram-se num coro mudo de espanto e admiração. O velho sabia, e sorriu também.
Deslizou a bola colorida entre os dedos grossos, e devolveu-a ao bolso. Voltou a chamar cada um pelo nome, e em segredo, mostrou-lhes a bola incandescente, um a um, num segredo fugidio. Gargalhadas ecoaram, como gotas de felicidade materializada, porque se há felicidade, é às crianças que pertence!
A partir desse momento, em que o último menino viu a bola mágica e nela se conheceu, o sol passou a beijá-los a todos pela manhã, e a chuva a lavar-lhes as tristezas quando o sol estava cansado. Nunca mais o velho voltou, regressou ao sol, e eram dele os beijos, e suas as lágrimas que a chuva trazia.
Essas crianças, iguais e diferentes entre si, serão velhas um dia, se não o forem já. Mas terão sempre dentro de si o sorriso do sol, e a lembrança do sonho feito conto de embalar pela pena de quem não esqueceu.


... não deixes de querer fugir, porque saber fugir não é mau ...


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