Memória

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Estendeu o braço sobre a almofada. Caiu-lhe o sono das pálpebras, derramou-se o corpo entre os lençóis com medo do dia e da luz que esperam no amanhã que não se quer. Abraçou a almofada num último esforço infrutífero, o sono tinha saído e fechado a porta do quarto. O relógio não parou e no escuro o vermelho não rouba a luz às estrelas.
Suspendeu o gesto, não precisava de mais luz.

Suspendeu-se a si mesmo, inerte no tempo que o ultrapassava. Ouviu-se a respirar, ouviu o roçar dos pés nus no lençol, ouviu o vento beijar-lhe a distância. E ouviu o relógio avançar. Quase que ouviu o sono voltar, mas apercebeu-se que sonhava acordado, com a almofada entre as mãos. Passou as mãos pela cara, quis saber se era real, se bem que nunca se sentia real de noite. E sabia que era de noite que era mais real que alguma o vez o seria na claridade aberta do dia.
Fechou os olhos e deixou-se inundar de formas e cores, carregou nos olhos para se sentir deslumbrado por ver de olhos cerrados quadros dignos de museus que apenas visitara por fotografias a preto e branco.
Fechou o corpo, abriu os olhos, e no escuro e vermelho tudo lhe pareceu flutuar. Se pudesse, tinha tirado uma fotografia, daquelas que o tempo se encarrega de ir fazendo esquecer.

E se tivesse pousado os olhos mais suavemente, e se tivesse afastado a almofada, teria visto que do outro lado da cama, os lençóis estavam docemente enrugados. E se tivesse visto, teria sentido o calor.


Quase larguei a dor
Quase perdi
Quase morri
Dentro de mim


Palavras

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Essas ...
Armas, estandartes, mãos, sorrisos, refúgios, partilhas, asas, voos, mestres, desafios, imagens, gotas, brilhos.
Estas ...
Vazios, costas, medos, silêncios, fugas, trocas, chãos, cimentos, friezas, ilusões, desilusões, ausências, dúvidas, nadas.


e a pena foi agravada por tudo se ter passado
no lado errado da noite

(há ausências que doem mais que outras)


Hábito II

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Saiu um pouco mais tarde do que previra, e a pressa da cidade em detê-la em viscosos engarrafamentos quase a levava ao desespero. Já o imaginava a tamborilar os dedos na mesa enquanto esgotava o primeiro café e copo de água. Dois cubos de gelo, se bem se recordava. Sempre atrasada, diria ele, ela teria de concordar.
Pagou o táxi. Riu-se, se ele soubesse que era apenas quando estava com ele que tentava adivinhar as luzes verdes no meio da cinza citadina. Enquanto apressava o passo, sentiu a calçada puxá-la um pouco mais, como que a lembrar-lhe o peso de cada decisão motora em avançar.
Sabia que iria sorrir ao entrar no café. E que ele esboçaria um sorriso resposta. Era tudo o que precisava, saber a resposta no seu sorriso, a franqueza no seu olhar. E sem saber, sorria já enquanto se aproximava.
Entrou, e lá estava ele, com uma chávena de café abandonada e um copo vazio. E um sorriso que se multiplicou na sua pele.


Somos nós o fim do que existe em nós


Hábito

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Pediu um café, e o copo de água veio com dois cubos de gelo, como era hábito. Hábito e costume, e sorriu, enquanto deitava o açucar, como não fazem os verdadeiros apreciadores de café.
Por hábito e costume, bebeu a água, bebeu o café, acendeu um cigarro. Olhou o relógio de parede, quatro menos um quarto. Tinham combinado às três e meia, mas sabia, por longos anos de hábito e, claro, costume, que ela chegaria atrasada.
Não fazia mal, nunca fez, para ser totalmente sincero.
Tinha tanto para contar. De como sentira falta do seu sorriso, das suas palavras, dos seus conselhos. Ela era tão real, tão simplesmente real. E sabia sempre o que dizer.
Foi a pensar nisto que se sentiu escorregar de si mesmo para debaixo do chão.
Não a podia perder. Nunca, mas nunca. Nunca deixaria que o hábito de a saber sempre presente a deixasse escapar pelos dedos da rotina.
Foi quando ela entrou, sempre a sorrir. Ele sorriu também. Por hábito, costume, e algo mais.


Não existe o fim do que existe em nós
Nunca vês o fim do que existe em nós


Viagem

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Lenta, e pesada. Recostou-se como um animal ao sol, havia muito a triturar na sua imaginação pouco fértil e muito semicerrada de si.
Deixou-se conduzir enquanto saboreava cada réstia de memória dos dias recentes. Para quem é mãe dos tempos, os dias são frutos coloridos.


Lembrou Pedro e Inês, deitados e sepultados juntos. Abençoados pelo Sol, velados pela pedra e pela monumentalidade secular. Era para um amor assim que tinha nascido. Para um amor intemporal, daqueles que fazem acreditar em contos de fadas e príncipes e princesas e na felicidade eterna.
Quis ser o ardor no cume da imortalidade. Lembrou-se, agonizante, do nome destinado cravado no pescoço da alma. Apagá-lo era degolar-se, era esvair-se. Daí ser cinza. Porque se tentou curvar às exigências dos homens. O seu choro transforma-se em cinza fina assim que é arrancado do seu rosto, e o seu sorriso petrifica-se na distância demasiado longa para ser percorrida. Ela, eterna e imortal, tem tempo. O mundo não.
Cai a noite. Cai de si, em restos de mulher. Sabe-se e sabe-os. Pouco importa, nada importa agora. Não há nada que a impeça de se arrastar no ar e ser lava, vulcão ardente, cativante e mortífero. É o mundo, que a cria e a ela se ata e cola. O mundo, feito de putas púdicas sem saber o que é a queda, o que é saber de cor os caminhos do matadouro. Estende-se ao sol, pousa os olhos, larga os pensamentos. Chegou, voltou. Ei-la.
É um animal, e pouco mais. Optou pela trela invisível que a ata sem a torturar. É prisioneira, mas também prende quem a aprisiona.
Quis ser Inês. Mas era Romã.


por favor diz-me quem
és tu de novo


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  • de eu vim de outra esfera
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