As imagens amontoam-se na sua cabeça enquanto tenta dormir.
As vozes ecoam tão claras como se estivessem deitadas a seu lado.
Acende a luz, com a mão trémula. A idade deu-lhe sageza, mas retirou-lhe firmeza e agilidade ao gesto.
Outra vez este engano do que poderia ter sido. Do que queria que tivesse sido.
Tirara todos os espelhos desnecessários da sua pequena e solitária casa. Olhar-se todas as manhãs e confrontar-se com a negação da sua vida tornou-se um peso insuporável à medida que a idade não a poupou. Pouco a pouco, perdeu a esperança, que morreu, em último lugar, mas morreu.
E assim, sem espelhos para se mirar, adivinhou os seus cabelos brancos a emoldurarem as suas rugas que já teriam sido de expressão, e que agora são de desilusão e de vincos do tempo.
Tendo sonhado tão alto, tendo amado tanto, nenhuma história ficou para contar aos netos que não tem dos filhos que não teve.
Levanta-se. À sua volta, o mesmo rosto de sempre a olhar e a sorrir. Tenta enxotá-lo, mas sabe que não consegue. Sabe que o amou demais, e que ainda o ama, apesar de hoje o adivinhar também de cabelos brancos e rosto gasto, sem o sorriso fácil que a apaixonou.
Arrasta-se até à cozinha, bebe um chá esquentado, com sabor a nada, da cor do nada. A luz amarelada mostra-lhe os restos de si.
Volta a deitar-se, puxa o cobertor. Doem-lhes as pernas e os olhos.
Dói-lhe ser.
... qualquer coisa impossível fez-me acreditar ...
Os sonhos que se desvanecem, os espelhos que se retiram, as estórias que a memória não reteve, as histórias que o tempo não apagará, o tempo que voa sem esperar por ninguém. Acreditar numa réstia de esperança vã que também já desapareceu. Pedaço trémulo de um relógio que já não tem conserto...
Venho aqui diversas vezes absorver um pouco dessa melancolia que tão bem expressas, um pouco de ti talvez... Obrigado pela partilha.
Obrigada. É curioso ver o que fazem as palavras, como nos tocam, nos sussurram e nos levam para longe, afinal tão perto. Nisso, as tuas palavras são muito maiores e limpas que as minhas, que são fragmentos com alma.
Sim, eis um pouco de mim nestas linhas. Um pouco? Não, pensando bem, não é um pouco, é muito de mim! Ainda que aqui a ficção se cruze com o universo das minhas metáforas.
Eventualmente, um pouco mais do meu tudo no Pedacinhos de Estrelas, por ter sido "o primeiro", o "meu mundo" onde só eu me encontro e os outros lêem sem ler as entrelinhas dos meus episódios.