Lisboa, um destes dias de Janeiro de 2008
Sabes, descobri que todos os velhos têm o mesmo cheiro... Sim, velhos, não ponhas essa indignação colada ao rosto. Velhos, porque haveriam de ser "pessoas de idade", ou "idosos". Há novos e velhos, está tudo dito.Mas estava a contar-te que foi pelo cheiro que me lembrei de ti. Estava à espera numa casa de banho pública e sairam duas velhas (pronto, velhotas, está melhor? sim? então prossigamos). O cheiro, era como o teu nos últimos tempos. Parece que foi um relâmpago, soube que não deveriam durar muito mais neste lado da existência... Pelo menos não como até esse dia.Sabes, ainda não apaguei o número de telefone da tua casa da minha agenda do telemóvel. É meio surreal e estranho, visto não morares lá há um bom par de anos. Realmente, mal dá para fazer contas. Afinal, já te atiraram terra para cima do caixão há quatro meses. E antes disso, foram os meses de morte-vida à espera do meio-fim. E o cheiro.Temos visitado o senhor Serafim. Ñão, não porque lhe tenha algum afecto particular, mas na sua lucidez enrugada, ainda se lembra de ti. E não soube ele muita coisa. Efectivamente, as pessoas partem. E de verdade, o cheiro é muito do que resta, mas custa-me reduzir-te a um cheiro. Gravei a preto e branco as frases do Barnabé. Batatas fritas em frigideira, latas de atum, o tanque e a boneca de vestido outrora encarnado cereja.
Não tenho muito mais a dizer. Parece que fazes falta, que soltaste o último grito na noite da trovoada do ano. Que te despediste no frio de ninguém. E se assim é seco o adeus, não te consigo escrever nada mais cor-de-rosa.
Adeus... até um destes dias, por trás de uma nuvem, ou de uma porta.
Cedinho ainda, no pardo amanhecer,
os abetos mijam
E a passarada, os seus parasitas,
começa a gritar
A essa hora bebo um último copo na cidade
E deito fora a beata e, inquieto, vou-me deitar...
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