E se só tivermos o agora? Perguntas-me, triste, e eu carrego a tua tristeza sem to dizer.
Meu amor, sabe que só temos o agora, é tudo o que temos. E é como uma bola de sabao, efemera e mágica, finíssima e encantada. Nada mais. E se nao for para ser agora, entao teremos apenas o nada do agora que já tivemos.
E eu reconhecer-te-ei. Em cada esvoacar de ave de asa em V, em cada ínfimo pormenor colorido, em cada gesto preso, em cada som rodopiado, em cada ritmo descompassado, eu reconhecer-te-ei. Em cada riso desfeito, em cada olhar invisível, em cada cheiro que se impregnar em mim, reconhecer-te-ei. E serás em mim, mesmo que o nao saibas, um agora cheio de memórias.
E tu reconhecer-me-ás, o meu olhar manso, a minha interrogacao receosa, o meu ardor contido, o meu perfume em ti, o meu sorriso para ti, o meu medo por nós e o meu devir.
E quando, fendido e quente, te debrucares sobre outro corpo, quando solucares, rouco, num esquecimento que te tolde os sentidos, e a alma, dentro de uma mulher que nao eu, aí, e só aí, saberas que me esqueceste. E que o agora que temias, feito bola de sabao, implodiu.
Como o amor.
Mastigo as palavras silenciosamente. Cuido-te (sem que o saibas) enquanto te empurro para fora do chão que me deste. Não ferirão as palavras que te escondo nem por volume, por aspereza ou mesmo por maldade. No fundo (meu amor), será mesmo o amor que te tenho que nos separará. Dir-te-ei o que me pesa com olhos rasados de nãos e as memórias de ti coladas na garganta e cravadas na retina. Dir-te-ei que te enterrei no abismo onde me faltas (o teu corpo permanece em mim) e que o resgate da minha alma só tem força para um de nós. Faltar-me-ás (todos os dias). Quebrar-te-ei o que resta de nós para te salvar deste ventre sujo que sou. Cheiro-te, ainda, em mim. Inspiro. Expiro. Preparo-me. Sem aviso. Mordo-te. Com força. Muita força. Toda a força. Até persistires apenas tu, sem mim, e o meu corpo, exangue, nada mais te provocar senão um frémito que não saberás precisar.
As mãos que toco tremem de amor
Os corpos juntam-se na procura de calor
E o que dizemos dali não sai
Os olhos juram e eu juro ainda mais
Vem um frio de mansinho que se instala, rudemente. Engole-me as mãos, os pés, o pescoço e finge-se de carícias. Depois, envolve-me e mastiga-me e continua a digerir-me como se se alimentasse de mim.
Tenho sono, peso-me para me sentir, mas os dedos falham em reagir. Tenho frio. Sou frio. Estou fria. Ao mesmo tempo, o inverno de mim apodera-se do calor que teima em se anunciar.
Este é um calor ténue, diminuto, quase um fósforo, apenas um quase fósforo. E o frio, manso, quase amigável, reconhece que um perigo menor se avizinha, um quase perigo, um quase nada.
O banquete prossegue e a minha prisão de gelo pouco tarda. Nunca tarda, nunca falha.
E depois, pela fosca luz da madrugada (ou será o entardecer mais longo, como saber?), vens tu. Acender luzeiros em vez de fósforos, porque o amor, tal como o gelo, serve apenas para queimar.
A luz continua presa ao tecto
Por mais que se tente tirar
Está alta de mais
Ou encandeia os olhos
Ou queima quando se toca
Parece que sabe queimar
De um lado, um calor confortável de quem sabe o que espera.
Do outro, a pele que se arrepia por antecipação.
De um lado, o olhar sereno e confiante de quem sabe que entregou tudo, para além da vida e da morte.
Do outro, uma hesitação de quem fica em suspenso.
De um lado e do outro, a certeza de se querer ser apenas uma.
Dá-me a tua melhor faca
Para cortarmos isto em dois
E amanhã esquecer
Escuto, desassossegada, o lamento constante e insidioso da chuva lá fora. A inquietudo escava-me maldosamente o peito e rouba-me a paz que apenas retenho fugidia entre os dedos. Respiro luz, preciso de luz, falta-me o ar no escuro dos dias, os meus sonhos fazem-se de luz e claridade, tento desesperadamente encontrá-las dentro de mim. Sem sucesso.
Arranco-me as asas, essas tristes inúteis que insistem que hei de voar. Valer-lhes-á de muito, essa esperança. Arranco-as, furiosa com a acidez que de mim brota. Isto não sou eu eu, juro a pés juntos. E quanto mais me ergo e agiganto, mais me assusto. Repito, esta não sou eu. Eu não sou eu.
Mordo-me e sufoco-me. Preciso de ar. Quero ar. O meu querer é guerreiro e fugaz, frágil perante o monstro que se me revela dentro de mim. Porque esta também sou eu.
E tenho medo.
Se há luz lá fora eu quero
Que haja luz em mim
É quase um tanto, e é um nada cheio de tudo.
Sabem, quase sempre souberam, que as suas maos cabem perfeitamente uma na outra. Aliás, se acreditassem no destino, (quase) adivinhariam que foram maos feitas para se adivinhar e desenhar através do tempo e do espaco.
Poderia ser um voo de asa aberta, graciosa, leve e espontanea, um desses voos que desafiam a gravidade dos sentimentos e que ficam gravados na pele porque para isso nasceram.
E poderia ser um olhar cheio de gargalhadas, como aquelas gargalhadas plenas que ficaram esquecidas no recanto da infancia e que hoje quase nao se ouvem em voz humana. Gargalhadas puras, ternas e melodicas, cantadas com o coracao.
Poderia também ser um olhar daqueles doces, cheios de um tanto irrepetível que nao cabe nas palavras que aqui se escrevem. Um olhar de terra fecunda, onde na areia sem medo se desenham os corpos outrora hesitantes.
É quase um tanto, sem ser quase nada...
Detesto fazê-lo mas eu não resisto
Nesse momento eu começo a sentir o alívio do ver
Sou uma prisão de que fujo a que regresso